Começava olhando o quadro branco a sua frente pelo tempo que fosse necessário, em seguida erguia uma das mãos - por exemplo, à esquerda - e fechava um dos olhos - nesse caso, o direito - para enxergar a perspectiva e pronto: lá estava a projeção do que ele queria representar.
O próximo passo era
o de seleção, pegava as cores no tom que gostaria de expressar, indiferente a
realidade, não era essa a necessidade, misturava-as e molhava bem a ponta do
pincel.
O momento seguinte
era frenético, as pinceladas iam e vinham com tamanha destreza que ele
terminava em poucas horas algo que necessitaria de dias na mão de qualquer
outro artista. Entrava em transe.
O Resultado? Espetacular.
Mas algo em minhas obras vinha me causando um estranho
sentimento... um incomodo. Todas elas, desde que minha mulher fora embora,
desde que recebi aquela estranha visita, pareciam estranhamente semelhantes em
um aspecto.
Suas expressões.
Enfim, não era hora para pensar naquilo, logo receberia
novamente a visita, a pessoa que encomendava os quadros.
Ele vinha sempre da mesma maneira, ele batia a porta e
perguntava se podia entrar e, mesmo que eu dissesse "aguarde um
momento" ele entrava. Andava pelos cômodos de minha casa até encontrar-me
e então começava a perguntar sobre o quadro. Não posso dizer que ele me era
próximo embora eu o já tenha encontrado tantas vezes (Sem perceber, confesso).
E fazia questão de tocar em um assunto -
a mim - pessoal: minha separação. Isso me deixava mal, e assim que ele
percebia, fazia questão de falar da próxima encomenda, o próximo rosto que eu
deveria desenhar.
Era quase uma hipnose, pois quando ele comentava sobre isso,
eu também 'quase' esquecia de tudo o que ia fazer e tomado por um sentimento
único (e não necessariamente bom), eu me sentava e pintava continuamente.
Porém, naquele dia eu estava disposto a perguntar o que já
há um tempo me atormentava:
- Por que em todos os rostos que desenhei, todos os
personagens aparentam estresse... fúria, revolta....Por que?
Aquele senhor que fazia as encomendas, de rosto severo, mas
que costumava parecer gentil e até sorrir, sempre trajado de preto, respondeu
prontamente:
- Talvez você só os represente dessa forma porque não
compreenda, ou talvez...
Deixou no ar o restante da frase, apenas me observava enquanto
eu continuava incessantemente pincelando o quadro; primeiro as sobrancelhas
franzidas, depois os olhos cerrados e então as rugas de expressão juntamente de
dentes trincados ou gritos engasgados.
Sem perceber, eu ia desenhando pessoas que mantinham a expressão
de que matariam quem as admirasse, e, no entanto, ele sempre encomendava mais e
mais quadros assim. Custou a eu perceber
que as faces - a principio - desconhecidas eram na verdade alusões a todos os
meus familiares e meus companheiros próximos, minha ultima encomenda foi minha
ex-mulher, a quem dediquei mais horas para representar terrivelmente em sua
face tudo que haveria de pior no mundo... Mas foi só após terminar meu próprio
auto-retrato que compreendi o que eram aquelas expressões.
Tratava-se da visita do ÓDIO, o mesmo sentimento que
inundavam todos meus desenhos e que me fazia sentir repulsa por cada um
daqueles que desenhei...
De qualquer maneira, lembrar disso tudo me deixa muito mal,
mas tanto faz...
Não me incomode. Eu preciso desenhar agora...
"O ódio tem melhor memória do que o amor"
Difícil pensar que o amor pode gerar um sentimento tão catastrófico, o ódio. Mas acredito, e ainda restam esperanças de que pode suceder-se do ódio o benigno amor.Porque não restam dúvidas, "os quadros podem se inverterem", é com este pensamento que chegamos a conclusão de que tudo tem o seu lado bom (e ruim,é claro), inclusive o ódio. Pois a cada instante que é proposto ao protagonista que este pense em sua remota relação—a qual lhe traz grande rancor—é concedido uma "rota de fuga" para que possa expressar suas emoções, sobretudo o ódio.
ResponderExcluirAh...Se eu tivesse a oportunidade, daria parabéns ao tal que por meio da arte expressa seu ódio, este que através da dor consegue tirar suas inspirações. Mas dou prestígios aquele que usufruiu desta inspiração e prestaste bom ato a sociedade, mais uma vez um belo de um texto. Obrigada belo trabalho que concede-nos, cortejo-te pela bela obra!