sexta-feira, 9 de março de 2012

Autos 3: Dos semblantes tristes...



Eu o havia visto pela primeira vez em meu consultório, tratava-se de um rapaz de aparência comum, moreno e de estatura mediana, magro. Semblante calmo e – por vezes – até inexpressivo.

“Antes de prosseguir, devo informar que sou médica já a 5 anos, e o que vou relatar é uma experiência única cuja qual duvido que vou vivenciar de novo ou que alguém vivencie também.”

Ele sentou-se a minha frente olhando para mim como se fosse desatar a falar, mas permanecera calado.
- Olá Sr... – pegava a ficha dele em mãos – Tales, tudo bem?
A cortesia dos médicos de consultórios particulares era admirável.
- Sim, tudo. Dissera ele, mas visivelmente sem firmeza em sua voz.


“Após tantos anos de experiência, era natural que seu atendimento ( pela fama que adquirira ) se direcionasse principalmente a classe média alta e alta, no entanto...aquele garoto já havia pago a consulta”
 
- O que o traz aqui, neste caso? Perguntou ela.
- Você.....- Respondeu ele. Nesse momento, a Doutora Francielle sentiu-se corar – sem maiores explicações – pois havia sido bastante inesperado a reação, mas ele continuou - ....acredita em premonição? Pressentimentos?
A médica voltava ao normal ( confessava a si mesma que tinha prendido a respiração por uns instantes ) , fez uma expressão curiosa, mas a essa altura dos fatos, não sabia dizer se com a pergunta ou se com o algo misterioso que insistia em envolver o semblante, voz e palavras daquele menino.

“Ressalto que – modéstia e pretensão a parte – eu já ouvira algo assim algumas vezes... Pacientes que comentavam sobre sua beleza intensa, algo que mesmo eu havia esquecido possuir por conta de nossa convivência com tanto sofrimento, entende?”

Suspirei:
- Hummmm...me fale sobre isso, sim? – Em outra ocasião, talvez,  o encaminharia para outra especialidade  ( psiquiatria ou psicologia, provavelmente ), mas não fiz, queria ouvi-lo.
- Não sei porque, mas fico meio aéreo as vezes...-pausou- ... sinto como se não pertencesse mais a este lugar...
 Olhou-a nos olhos em seguida, olhos centrados e penetrantes, olhos de quem sabia o que estava falando e que demonstravam sinceridade.
- E a qual lugar você pretende? – Perguntei já absorta, existia um algo mais naquela história que me despertava absurdo interesse, mas ele pareceu distrair-se e, parando de olhar para mim, passou a olhar ao redor, na sala.
- Acho sua profissão incrível, sabe? – mudara de assunto – Cuidar dos outros é tão...bonito....


No momento seguinte, me vi segurar as duas mãos que ele havia posto sobre a mesa e quase dizer “Me deixe cuidar de você”, mas as palavras não saíram...e ele também não pareceu querer falar, mas sorriu...sorria pela primeira vez.
- Você é uma pessoa maravilhosa, Doutora Franciellef. Disse ele enquanto educadamente retirava suas mãos da mesa... – Preciso ir!

Realmente ele precisava ir, então eu também me levantei, existiam outras consultas afinal. Acompanhei-o até a porta e lá esperei ele se distanciar um pouco. Vi em seguida uma moça chama-lo, parecia esperar por ele. A moça era até parecida comigo, cabelos longos e negros além dos ombros, branca e visivelmente séria.  Ela olhou para mim e mudou sua expressão para uma tristeza notável, pareceu cumprimentar-me, depois, colocou-se ao lado dele, e eu fechei a porta.

Mas durou muito pouco até ouvir um grande estrondo e gritos. Correu para a porta novamente. Lá fora... pessoas estavam reunidas em circulo além da porta principal do consultório, meu coração disparou....Acho que eu já sabia e, mesmo assim, corri para ter certeza, fora muito rápido.
Já lá fora, vi o garoto deitado e inerte no chão, nada disse para deixarem-me passar, foi tudo bem natural...E eu vi sangue espalhado na rua e ao redor do capo de um carro do outro lado da calçada, me abaixei perto dele segurando sua cabeça e em seguida levando meu rosto perto de seu nariz. Constatei não haver mais respiração, e por isso mesmo, tomei um susto no momento seguinte, pois eu juro por Deus que ouvi ele dizer:
- Obrigado...doutora.

Abracei-o involuntariamente ( embora eu ache que o abraçaria de qualquer maneira ) e olhei para o céu me perguntando o porque, pois ele parecia ser um bom garoto. Mas nossa profissão é assim, e por isso mesmo...uma lagrima escorreu de meu olho, apenas uma.
Na semana seguinte eu ainda me pegava pensando naquilo, e em como tudo aconteceu. Entendi por fim que aquelas sensações nada mais eram do que realmente um aviso e, principalmente....Que até a
MORTE pode ficar triste, agora eu tinha certeza de que quem eu vi acompanha-lo era ela....
Mas quanto a possibilidade dele de me agradecer....Até hoje....eu não consegui explicar....


5 comentários:

  1. Este texto é muito profundo... e mesmo com um final não completamente inesperado, um ar de mistério esteve presente em todas as palavras. Comecei a ler e não consegui mais parar. Gostei muito! Encerraste muuito bem: "Até a morte pode ficar triste".
    Acho que esse aí é o meu texto favorito de todos os que você postou até agora. Magnífico!
    Gostei demais mesmo. Beijos :)

    http://refugiopcional.blogspot.com/

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    1. Dalyla!!!! Obrigado pela presença sempre =D
      Escrever sobre a morte trás sempre muitas reflexões mesmo, quem há de dizer que alguém..próximo a morte, iria querer apenas atenção...um "se importar" né? Os médicos convivem com esta morte todos os dias, dai a relação. Enfim, obrigado viu? Que bom que gostou

      beijos!!!

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  2. Alguém tem medo, alguém tem perguntas, alguém sabe e viu, alguém sentiu.... Eu não fui a unica pessoa, as pessoas sabem, as pessoas vem, as pessoas tem medo e talvez perguntas do porquê quando chega a hora delas....
    Grande texto irmão, e obrigado pelas boas vindas, você é realmente muito bom.

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  3. A morte matou o que eu ia dizer!
    Mais deixou o que não pode ser morto!
    Minha admiração por você!!

    Parabéns!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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  4. Ei! Que cantinho mais bacana...
    Gostei e até voltarei mais vezes! ^^
    Se possível, visite "Sinais de Mim" também?
    Beijocas! ^^

    http://sinaisdemimtl.blogspot.com/

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